No início do século XX, surgiam na Europa duas grandes vertentes vanguardistas de com posições formais similares, mas muito diferentes no ponto de vista ideológico: as vanguardas russa e holandesa. O abstracionismo geométrico, o uso ora racional ora expressivo destes elementos, a criação de arte não-figurativa, a análise científica e técnica na arte, a discussão e a criação do espaço no plano pictórico, entre outras características serão abordadas pela primeira vez de modo revolucionário e inovador. É erguida a bandeira de uma nova era.
A progressão que estes dois movimentos dão ao cubismo e futurismo faz com que sejam, em um primeiro momento, parecidos visualmente. Assim, as diferenças entre os movimentos – que ocorrem em um mesmo período histórico da arte – são grandes e não somente do ponto de vista estético, mas também em seus conceitos, influências, ideais sociais e principalmente no modo de representação artística. Este estudo visa esta análise dicotômica entre os dois movimentos, comparando-os.
Contexto: Revolução Russa x Ideal revolucionário
Os movimentos vanguardistas russos se inserem em um contexto revolucionário [Revolução Russa] em que as correntes de vanguarda se aliam aos movimentos de intelectuais contra o regime czarista que se instaurava na Rússia. Assim, seus propósitos modernistas de transformação da sociedade são levados à prática em meio à revolução, colocando a função da arte como questão política e de comunicação entre os membros da sociedade. Na Holanda, os movimentos vanguardistas também têm em seu início promessas de transformação social por intermédio da arte focando principalmente no desenvolvimento e criação de um novo estilo que refletisse o espírito de sua época.
O movimento holandês não se insere em um contexto revolucionário, como a Revolução Russa, espalhando mensagens de revolução. Seus manifestos são publicados de modo tímido e pacífico na revista De Stijl – fundada em 1917 por Piet Mondrian e Theo Van Doesburg. Deste modo, na Holanda o movimento não possui tanta força no que se diz respeito a uma transformação da sociedade e da relação direta desta com a arte. É menos influente por não estar inserido em uma sociedade de espírito revolucionário.
Arte social: Equilíbrio x Comunicação
Influenciado pela teórica do Arts and Crafts de William Morris, o De Stijl, ou Neoplasticismo, tentava transformar a sociedade através da arte. Consciente do papel do artista perante a sociedade, Piet Mondrian faz de sua pintura um projeto de vida social, pois não acredita em uma sociedade utópica sem problemas e conflitos, mas que os resolvesse através do raciocínio e não da violência. A relação equilibrada em seus quadros propiciaria consciência racional, moral e estética à sociedade.
“Uma implicação social – o equilíbrio que perpassa a oposição, contrastante e neutralizadora, aniquila indivíduos como personalidades particulares concebendo, assim, a sociedade futura como real de unidade”.
Assim, o equilíbrio – obtido pela proporção dos meios plásticos (plano, linha e cores) – é exigido cada vez mais na composição de obras neoplasticistas, tendo como fundamento a transformação social. Esta proporção perfeita é alcançada quando Mondrian compensa as diferenças de cores na maior ou menor extensão dos quadrados e retângulos, inserindo linhas verticais e horizontais que direcionam o olhar fazendo-o percorrer na tela sem que se destaque uma única parte.
O pensamento político neoplasticista voltava-se para a formação de uma sociedade onde as divisões sociais não existiriam e o poder se dispersaria, não o concentrando em uma única pessoa [“… sociedade futura como real de unidade”].
É importante observar que os conceitos de unidade e equilíbrio estão presentes tanto na visão política quanto em todos os aspectos da arte neoplasticista, sejam eles plásticos, ideológicos ou conceituais.
Na Rússia construtivista, Vladimir Tatlin acreditava que a arte deveria acompanhar a revolução sendo funcional para a vida do povo, além disso, deveria transmitir visualmente a sensação da revolução em andamento; a arte não deveria mais representar, mas informar a revolução, o momento histórico, além de uma comunicação entre os membros da comunidade.
A exemplo da aplicação de sua ideologia de arte funcional projetou o Monumento a III Internacional, onde propõe uma gigantesca estrutura metálica que gira sobre seu eixo, cuja funcionalidade era uma antena emissora de sinais luminosos.
Ainda na Rússia, a posição de Kasimir Malevich é radical para com a revolução. Sua visão é diferente tanto da neoplasticista quanto do próprio ideal revolucionário que participava. Para ele a substituição da antiga concepção de mundo para uma nova não bastaria para a criação de um novo mundo; para isso seria necessário que se apagasse qualquer relação do homem com o objeto, passado e futuro, que tivesse um novo começo, imaginando uma cidade onde objeto e sujeitos se exprimam em uma única forma. Desta forma, em sua arte busca a relação entre o sujeito, artista, e objeto.
É importante observar que Malevich está mais focado na formação intelectual socialista, de um mundo destituído de objetos, de não-propriedade das coisas, do que da propagação da revolução, de arte como comunicação revolucionária.
Apesar de conceitos diferentes com relação ao papel da arte para com a sociedade, os movimentos vanguardistas, tanto russos como holandês, lutavam por uma transformação social e política igualitária.
Forma: Cubismo x Tradição
Em seu início, ambos os movimentos dão continuidade aos antecessores, tais como cubismo e futurismo, sendo de importante influência para a construção de seus estilos.
Antes mesmo de fundar o De Stijl, Mondrian já pintava quadros cubistas. A influência desta faz com que leve as formas geométricas para o novo estilo na busca pelo equilíbrio e harmonia. Em 1914, pintava composições rigorosamente abstratas da paisagem. Embora parecessem não-figurativa Mondrian atribuía-lhes títulos como O mar, A Fachada e Andaime.
Em 1913, no Raísmo, um dos primeiros movimentos organizados da vanguarda russa, era possível evidenciar a forte influência do futurismo no dinamismo maquinista aplicado por Nathalia Goncharova. Essa variação de tempo e espaço que o futurista captura foi essencial para o desenvolvimento teórico raionista.
O uso das formas geométricas na arte russa, tem sua origem não só da influencia cubo-futurista, mas também aos propósitos revolucionários de interesse no povo. Os artistas russos resgatam tradições e estilos da antiga arte eslava – escudos heráldicos, nos desenhos de antigos mosaicos, nas treliças islâmicas, em bandeiras – de modo que aproxime ainda mais a comunicação entre a arte e o povo. Contudo, o construtivista irá usar as “formas tradicionais” abandonando os objetos e suas associações, livrando-as de seu significado simbólico.
Malevich tentava alcançar ao máximo a expressividade sentimental, carregando consigo o significado simbólico da forma e cor. O uso que faz da forma geométrica para alcançar sua expressividade tem influência ainda na posição de Platão quanto a ela. Este menciona as formas geométricas quando escreve sobre a beleza decorrente no prazer dos estímulos físicos perante a forma e a cor.
Ao mesmo tempo em que utiliza formas geométricas provenientes da cultura russa, as aplica também ao significado simbólico cultural – como a cor – tornando sua pintura ainda mais expressiva.”O Quadrado Vermelho: Camponesa em duas dimensões (1915)” é um bom exemplo deste simbolismo expressivo que Malevich atribui à forma. Neste quadro, Malevich busca uma imagem sintética, onde o símbolo da Rússia (A camponesa, assim como a Nossa Senhora nas imagens religiosas), possa ser representado de uma maneira icônica, abrangente, imbuída de forte carga emocional, e coerente com os preceitos formais do suprematismo.
Representação: Real x Emocional
Os conceitos de representação artística são muito dispares entre o Neoplasticismo do De Stijl e o Suprematismo de Malevich, a começar por suas principais influências, no que se diz do embasamento teórico.
O pensamento do teósofo M. J. H. Schoenmakers exerceu influência predominante na construção da imagem do De Stijl. Schoenmakers sustentava o pensamento neoplasticista na matemática, ou seja, em ato de converter a realidade em construções controladas por nossas razões, para recuperar mais tarde essas construções na natureza. Assim, ao impregnar a matéria como visão plástica – levando-a um sistema de “purificação” da natureza que se baseava num processo de redução radical da mesma em formas ortogonais de cores primárias – se chega a essa nova expressão plástica de abstracionismo da natureza. Assim, a imagem resultante, abstraída da natureza, tem o intuito de ser ressoada, de modo implícito, pelo observador. Nos quadros de Mondrian, o significado se transfere do objeto representado até a organização abstrata de sua superfície bidimensional.
A relação teórica de Shoenmakers somada à visão racionalista de Mondrian resulta em seu rígido sistema de verticais e horizontais, nos quais insistia exaustivamente ao movimento: não havia liberdade expressiva. Haja vista que rompera com o movimento De Stijl quando Van Doesburg fez uso de planos inclinados a fim de acrescentar o dinamismo.
Já a construção de arte não-figurativa – arte liberta do mundo representacional – suprematista tem base no livro Do espiritual a arte, de Wassily Kandinsky em que escrevera sua doutrina da “necessidade espiritual” do artista. Para Kandinsky o artista tinha sua necessidade espiritual de expressão, livre de imposições formais:
“Do ponto de vista da necessidade espiritual, nenhuma limitação [de forma] pode ser imposta. O artista pode utilizar qualquer forma que sua expressão determine; seu impulso interior deve encontrar uma forma externa apropriada”
Para Kandinsky não havia necessidade de uma objetividade, de uma descrição de objetos na pintura, sendo esses prejudiciais a ela. Cada forma geométrica tinha sua peculiaridade, seu efeito.
Platão também exerceu grande influência na construção da teórica suprematista, pois este acreditava no mundo dos sentidos como sendo ilusório; encontrando-se a realidade além. A essência “real” do mundo se encontrava para Malevich na sensação, só esta possui significado, pois os fenômenos visuais do mundo objetivo são desprovidos de sentido. Assim, a não-objetividade suprematista se encontra no resultado plástico da expressão do que Malevich acreditava ser verdadeiro: as sensações.
Enquanto a teórica de Schoenmakers contribui para a utilização do abstracionismo geométrico como representação da paisagem real pelos neoplasticistas, a de Kandinsky e Platão contribuem para que o suprematista se volte para uma arte não-figurativa, sem a busca de representação de algo.
Não havia espaço para a liberdade do artista no rígido sistema de Mondrian. Já no Suprematismo o artista era livre para se expressar, pois esta era a prioridade, não havendo imposição formal.
Espaço: Pictórico x Arquitetônico
A descrição do tempo e espaço pela perspectiva renascentista já havia sendo abandonada pelos modernos. Para Van der Leck a pintura neoplasticista era um meio para essa nova comunicação, pois buscava o mesmo objetivo que a arquitetura em termos de comunicação, transmitindo a continuidade espacial arquitetônica.
Apesar de não intencional, por ser contra a aplicação da arquitetura na arte, Mondrian faz essa relação espacial em seu plano pictórico, reduzindo o volume tridimensional no plano relacionando-o com as cores primárias dando equilíbrio à sua composição. Deste modo, representa espacialmente, pois transforma a superfície em plano e através das coordenadas verticais e horizontais expõe a proporção métrica da altura e largura. Por fim, compõe a terceira dimensão na representação das sensações do local como cores, distâncias e luz.
“A percepção de uma cor não muda, muda à valorização da cor percebida, conforme a amplitude da área coberta e sua forma (retângulo mais ou menos pronunciado, disposto na altura ou na largura)”.
A discussão da criação do espaço no plano pictórico, já era discutida em movimentos do início da vanguarda russa, como o Raísmo de Nathalia Goncharova e Mikhail Larionov em 1913. Larionov buscava a criação de espaços através de movimentos de luz, do cruzamento do reflexo de diferentes objetos fora do tempo e espaço. O espaço era o resultado desse ritmo dinâmico de raios entrecruzados.
Na Rússia o conceito de criação espacial de Naum Gabo na escultura é revolucionaria. Juntamente com Pevsner, Gabo cria seu próprio conceito de arte baseado numa filosofia de tempo e espaço. Gabo constrói, em sua escultura, o volume através da profundidade dos planos, revelando seus espaços interiores, considerando estes como elementos escultórico absoluto.
É notório como há uma abordagem mais consciente na discussão do espaço pelos russos. Na Holanda ele acontece de modo implícito na pintura, sendo aplicado e discutido diretamente na arquitetura.
Unificação formal: Social x Plástica
A visão política, socialista, de Tatlin está também presente em sua posição quanto às artes: a distinção entre as artes deveria ser eliminada, pois seria como um resquício da hierarquia de classes. Para isso tanto a pintura quanto a escultura deveriam utilizar os mesmos materiais e procedimentos técnicos da arquitetura, onde esta deva comunicar sua funcionalidade.
Esta unificação das artes, tão desejada por Tatlin, é presente no neoplasticismo ao se analisar o ponto de vista estético. Os elementos neoplasticistas estão presentes em todos os meios artísticos (pintura, escultura e arquitetura) dando unidade formal ao estilo.
Van Doesburg já defendia a escultura e a pintura inteiramente ligadas ao projeto arquitetônico e não os inserindo posteriormente, como comumente se fazia. O mobiliário ou escultura neoplasticista não era independente, ou seja, era projetada para um espaço pré-estabelecido (a exemplo da poltrona de Rietveld).
A não distinção ou unificação entre as artes é feita ainda de modo mais efetivo pelo movimento holandês. Pois não só sua construção plástica é levada para os meios, mas também seus conceitos. Em 1918, por exemplo, Bart Van der Leck e Vilmos Húsgar aplicavam a composição, de formas ortogonais, da pintura neoplasticista na decoração de elementos arquitetônicos – teto, paredes, portas e móveis – buscando além da unidade formal: o equilíbrio e harmonia característicos do pensamento da vanguardista.
Quanto à funcionalidade, a escultura De Stijl também seguia a lógica construtivista. Do mesmo modo que para Tatlin a arte deveria ser utilitária, no neoplasticismo a escultura deveria ser funcional.
“Não mais existem artes maiores e menores: como forma visual, uma cadeira não difere em nada de uma escultura, e a escultura deve ser funcional como uma cadeira”.
Em 1917, Rietveld projeta uma poltrona onde alia o estilo neoplasticista à funcionalidade na escultura: sua forma é resultado tanto da utilização de elementos neoplasticistas – ângulos retos, linhas negras e planos de cores primárias – quanto do estudo de sua estrutura de sustentação.
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A forma e o uso da linha na Poltrona de Reitveld é também resultado do estudo de forças estáticas e de empuxo da pessoa sentada. Ao analisar o conceito da linha na escultura construtivista ela se assemelha ao da de Rietveld. Gabo, por exemplo, faz o uso da linha a fim de mostrar seus ritmos e a direção de forças estáticas – onde antes esta era usada como delimitação da forma, como contorno.
Arquitetura: Transparente x Sólida
Como já citado anteriormente, ao contrário dos movimentos russos, o holandês irá discutir a composição do espaço diretamente na arquitetura. O dinamismo, presente tanto nas obras de Nathalia Goncharova quanto nas de Malevich, é aplicado por Van Doesburg no interior de seus projetos, utilizando-se de linhas e planos inclinados, acrescentando também, maior profundidade ao espaço.
Doesburg acreditava que a arquitetura tinha papel privilegiado na união entre vida e arte justamente por existir no espaço tridimensional real. Assim, aplica a composição binária de planos verticais e horizontais na arquitetura.
Em seus projetos para habitações são resultados da composição assimétrica de volumes que se projetam para o exterior a partir de um núcleo central. Os planos, que compunham sua volumetria, se cortam e se sobrepõem formando os espaços, onde as cores primárias têm o papel de diferenciá-los.
Na Rússia, Malevich, faz experimentos formais como o Architekton, pois defendia o suprematismo como arquitetura abstrata, podendo transportar a sensação plástica realizada no plano pictórico para o espaço. A ausência de ornamentação faz parte da idéia de forma não-figurativa.
Apesar de o suprematismo e o De Stijl terem maior foco na construção da forma e estética arquitetônica, o De Stijl se diferencia pelo estudo de seu espaço interior [planta]. Já no Architekton, Malevich se foca apenas na forma como expressão e não define a função ou organização interna do espaço por se tratar de um experimento formal.
Ainda na questão formal, a arquitetura construtivista é bem diferente da neoplasticista. Os construtivistas constroem uma arquitetura de equilíbrio, onde conciliam estética – utilizando de novas técnicas e materiais industriais – e comunicação. A arquitetura construtivista é funcional: sua forma é o próprio esqueleto estrutural somado à idéia de objeto informativo.
Esta arquitetura transparente e informativa contrasta com a neoplasticista, que, ao mesmo tempo em que compõe o espaço através dos planos, o fecha em sua volumetria.
É importante observar que, apesar dos diferentes objetivos e resultados formais, ambos movimentos, tanto o holandês quanto o russo, estavam cientes da importância da indústria no desenvolvimento arquitetônico e social, fazendo uso da produção e materiais industriais, eliminando também o uso de ornamentação.
O grupo OSA, a exemplo da arquitetura construtivista, se concentra mais no utilitarismo desta e no desenvolvimento socialista, desenvolvendo projetos habitacionais e urbanos, combinando alojamentos familiares e serviços utilitários.
Apenas no movimento vanguardista russo, havia uma consciência urbana. O grupo OSA tinha uma visão “desurbanista”, propondo uma descentralização e demolição das cidades conservadoras existentes e a criação de cidades-jardim suburbanas. Nelas deveria haver uma dispersão da indústria, separando a vida urbana da rural.
A arquitetura neoplasticista dá continuidade ao estilo, e experimentos plásticos do movimento, como meio de unificação entre as artes, na busca pela criação de um novo estilo e também de uma nova consciência social.
No construtivismo a arquitetura não se relaciona esteticamente aos outros meios artísticos, mas se alia ao seu ideal revolucionário, comunicando a transformação de uma sociedade.
Bibliografia:
1 – COLQUHOUN, Alan. La arquitectura moderna una historia desapasionada. Barcelona, Editorial Gustavo Gilli. 2005
2 – BENEVOLO, Leonardo. História de la arquitectura moderna; trad. M. Galfetti e J. D. Atauri – 2ª ed. Barcelona: Gustavo Gili, 1974. Edição em português . História da Arquitetura Moderna. São Paulo, Editora Perspectiva. 3ed. 2001.
3 – ARGAN, Giulio Carlo – Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
4 – RICKEY, George – Construtivismo: Origens e evolução. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
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